quarta-feira, 30 de abril de 2008

Identidade



Busco um poema
de que quando lido
se perceba nas mãos a densidade.

Que aproveite
O tato refinado dos artelhos,
e a sensibilidade imaginativa dos pentelhos.

Que tenha um visgo,
Que grude por toda a eternidade
as borboletas no céu.

(Verdes versos)

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Máscara


Delírios postados,
por um cem número de pernas,
partiram levando a missiva
que entitulei-me: deus.

E a palavra estalada,
em permeio a dissonância
da revoada dos pombos,
tripudiava com a insanidade
dos outros deuses.

E eles,
surrupiados do direito uno
e tresloucados
diante da retirada das máscaras,
(entre trejeitos e suspiros)
denunciaram minha loucura.


(Para não dizer que não falei...)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Criação


Lavar a calçada,
no alvorecer do dia.
Espalhar os lápis de cera
e dizer ao teu filho:
– Cria asas!
Mas o pontilhado da história
é pragmático e se reapresenta retinto.
A falsa aleatoriedade do traço
traz o conteúdo da sombra.
O ignoto treme pela vida,
sob a dureza do concreto.


(Verdes versos)

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Cyrano de Bergerac


Admirai-vos de que essa matéria, misturada confusamente, ao sabor do acaso, tenha podido constituir um homem, visto que havia tantas coisas necessárias à constituição de seu ser, mas não sabeis que cem milhões de vezes essa matéria, avançando no sentido de formar um homem, ora deteve-se a formar uma pedra, ora o chumbo, ora o coral, ora uma flor, ora um cometa, pelo excessivo ou demasiado pouco de certas figuras que ocorriam ou não ocorriam nesse processo de formar um homem? Não é nada de espantar que, em meio a essa infinita quantidade de matéria em constante movimento e alteração, tenha havido a criação dos poucos animais, vegetais e minerais que conhecemos; como não é de espantar que em cem lances de dado ocorra uma parelha. É portanto impossível que daquele revolutear não se fizesse alguma coisa, e essa coisa será sempre admirada com espanto por um doidivinas qualquer que ignore quão pouco faltou para que ela não se fizesse. (Voyage dans la lune – Cyrano de Bergerac)

“Se pensarmos que essa peroração em favor de uma verdadeira fraternidade universal foi escrita quase cento e cinqüenta anos antes da Revolução Francesa, veremos como a lentidão da consciência humana em sair de seu parochialism antropocêntrico pode ser anulada em um momento de invenção poética.”

In Ítalo Calvino. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1990. (Lezioni americane – Sei proposte per il prossimo millennio, 1988)