quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Sonolento para apaziguar borboletas

                                                                            Pintura: W J Solha




                                                                            Para W J Solha
A sombra é neutra, e desandado o escuro,
e, se não há certezas, há o adeus,
da emoção que dura ao saber-se nulo
o testemunho erguido de um deus.
E se silente a cama – à procura
da insignificância hirta e desperta –
oferecer leito e cocho à loucura,
dizer-se talvez louco, mas alerta.
O chão é leito tosco, mas correto
a todo ser avesso a esperança,
àquele que titubeia e tropeça,
na pedra desolada e, sim, temida
que rola o descaminho, sem inércia.
Salvam-lhe a vida as asas de poeta.

Jorge ELias Neto

Esclarecimento: defino como sonolento meus primeiros poemas-estudo em busca do entendimento da métrica e formas fixas.

sábado, 25 de agosto de 2012

Ungaretti - poemas escritos durante a I guerra mundial



Na galeria

Um olho de estrelas
nos espia daquele açude
e filtra sua bênção gelada
sobre este aquário
de sonâmbulo tédio.

Lindoro de deserto

Um bruxuleio de asas fúmidas
rompe o silêncio dos olhos

Com o vento se debulha o coral
de uma sede de beijos

Perturba-me a aurora

A vida se me trasvasa
num enredo de nostalgias

Agora em mim se espelham os pontos do mundo
que tive por companheiros
e farejo um rumo

Até a morte ao sabor da viagem

Temos as tréguas do sono

O sol enxuga o pranto

Cubro-me com o manto morno
de lind’oro

Deste terraço de desolações
me entrego ao abraço
do bom tempo


Vigília

                                        Cima Quattro, 23 de dezembro de 1915

Uma noite inteira
jogado ao lado
de um companheiro
massacrado
com a boca
arreganhada
voltada para a lua cheia
com a convulsão
De suas mãos
entranhada
no meu silêncio
escrevi
cartas cheias de amor

Nunca estive
tão
aferrado à vida


Manhã

                           Santa Maria La Longa, 26 de janeiro de 1917


Ilumino-me
de imenso


 Vaidade


                              Vallone, 19 de agosto de 1917

De repente
se eleva
sobre os escombros
a límpida
maravilha
da imensidão

E o homem
curvado
sobre a água
surpreendida
pelo sol
se descobre
uma sombra

Embalada
e pouco a pouco
desfeita



Regresso

AS coisas guarnecem de rendas uma extensa

                                   [ monotonia de ausências

O agora é um pálido invólucro

Rompeu-se o escuro azul das profundezas

O agora é um árido manto



Ungaretti, Giuseppe, 1888-1970. A alegria: edição bilíngüe; tradução e notas Geraldo Holanda Cavalcanti. – Rio de Janeiro: Record, 2003.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Os canários do hortomercado


Acostumei-me a tomar o café da manhã na janela da cozinha, ouvindo os bem-te-vis. Um retorno à infância, no parque Moscoso, entre árvores e lagos tortuosos, ainda sem muros e assaltos.
Lembro-me das idiossincrasias... Das tartarugas marinhas, esbaforidas, enormes, não entendendo a falta de sal naquelas águas paradas, cheias de marrecos e gansos.
Mas o que mais me intrigava, criança ainda, desconhecedor do saudosismo dos primeiros imigrantes europeus, foi ter que substituir em meu imaginário, os canários-da-terra, e sua plumagem amarelo-canarinho – isso em plena copa de 70 –, que me acostumei a admirar na fazenda do meu pai, pelos tons pastel dos pardais. Aquela variação de cinza e marrom podia ser uma camuflagem adequada à falta de biodiversidade dos bosques e cidades europeias, mas dava um tom meio insosso às minhas manhãs. Se bem que eles eram engraçadinhos com seus saltos e ousadias...
Passaram-se longos anos e com eles sumiram os canários. Pássaro perseguido por seu canto e plumagem, preso em gaiolas (que muitas vezes eram mantidas abertas para entrada e saída dos casais que sempre retornavam para alimentar seus filhotes).
Recentemente, com um certo “adestramento” de meus iguais, os canários repovoaram as cidades do interior. Isso me deu até a ideia de conversar com os órgãos responsáveis sobre se seria possível trazer alguns casais para a ilha de Vitória ...
Hoje, vim mais cedo para o trabalho, parei em frente ao hortomercado e fiquei surpreso quando vi dois filhotes de canário brincando em meio à ansiedade dos carros no sinal vermelho. Fiquei preocupado: vai que alguém atropela aqueles jovens indefesos ...
Então observei o macho adulto, com a sua plumagem amarelo-vivo e cabeça vermelha, sair de um fio elétrico e arrebanhar suas crias. Surpreso, vi esverdear o sinal, e tive que cruzar a avenida.
Andei, talvez uns 50 metros, pensando, que mesmo com o passar o tempo, a cor amarela do canário permaneceu entranhada em mim.
 Mas lá estava ele, interrompendo meus devaneios, com um tom pardacento sem vida, fugindo aos saltos, da marquise do prédio que começava a ser lavada. Só que desta feita já não era um pardal e sim um homem que recolhia, torporoso, um colchão aos farrapos. Lá estava ele, o usuário de crack, para me lembrar o quão fragmentada é a esperança e que a realidade vestiu de cinza nossa cidade.

 Vitória, 10 de agosto de 2012

Jorge Elias Neto

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Paranóia


O minuto dividido
em sessenta pressentimentos.

Jorge Elias Neto

domingo, 5 de agosto de 2012

Entrelinhas da perdição

 
Farfalha o sargaço
no remanso
desse mar extinto,
despido de surpresas.

Perde-se o sal
nos lábios
ingênuos
que recolhem o sabor
da morte
triturada
― pacientemente ―
como uma esperança.

Jorge Elias Neto

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

EUGENIO MONTALE - III

APENAS UM VÍCIO

Bufões transvestidos de poetas
burocráticos arrogantes,
pedantes pregoeiros
vós sois os porta-flâmulas
brandindo insígnias desbotadas.
Ser poeta não é um título de glória.
Apenas um vício natural.
Um fardo que por medo
amarramos mal.

  
      ***
A noite que se insinua entre os refolhos
mais escuros, compreendeu o segredo
do tempo, do espaço que divide.
A verdade está talvez nessa fímbria
que se adelgaça, no toco de cigarro,
ressurge naquele fundo de garrafa
abandonado à margem da ressaca.
O resto não passa mesmo de um pretexto
para sentir-se vivo e menos só.

    ***
Um dia não muito longe
assistiremos à colisão
dos planetas e o céu diamantado
acabará submerso em escombros.
Então colheremos flores rutilantes
e estrelas de néon.
Olha, eis o sinal, um fogo
acende-se no céu, chocam-se
Júpiter e Órion e no terrível
estampido onde acabou o homem?
Certo que basta um sopro neste mundo
em que vivemos para que ele acabe.
Ficará talvez um grito, o da
Terra que não quer perecer.

    ***
Falarás de mim com o mesmo
fervor que te anima quando
recordas o avô já morto.
A morte não é o sono,
é um país do qual não se retorna;
lenta ressoa e depois chega,
é a hora, e de improviso é tua vez
de desaparecer entre seixos e terra.


Montale, Eugenio, 1896-1981. Diário póstumo/ Eugenio Montale; tradução, introdução e notas de Ivo Barroso; prefácio de Marco Lucchesi. – Rio de Janeiro: Record, 2000.